A “essência” do jogo brasileiro
As magias habilidosas dos movimentos corporais de Charles Chaplin e Garrincha povoaram por décadas o inconsciente coletivo da comunidade do futebol brasileiro como esteriótipos indispensáveis à diferença talentosa dentre os humanos nesse esporte. Ainda teimamos em creditar, sem investigar, que o jogo brasileiro nunca mais será o mesmo sem o genial protagonismo dos “jogadores diferenciados dribladores”.
A importância e o encanto despertados pelos super-talentos, em qualquer área da atuação humana, não será, nem de longe, questionada nessa reflexão.
No entanto, convido o leitor a me acompanhar numa releitura tática do jogo de futebol passeando por alguns relances da “essência brasileira” que o fez diferente perante seus pares pelo mundo.
“- A essência do jogo brasileiro sempre foi chancelada pelo artístico, envolvente e imparável jogo de passes nas ações ofensivas!”
Com mais ou menos requinte, o jogo de passes é a “essência raiz” da ofensividade desse jogo, além de responsável pela conectividade de “peças”, estruturas e conceitos táticos ofensivos.
O jogo das seleções brasileiras de 70 e 82, cantado em verso e prosa pelos encantos habilidosos que sempre causou, era essencialmente de troca de passes – e muitos “dribles coletivos”.
“Dribles coletivos” são as trocas de passes entre dois ou mais jogadores de uma equipe que ultrapassam espaços e adversários no campo em direção à baliza contrária.
Nos jogos mágicos de 70 e 82 não havia dribles individuais em destaque, apesar do poder habilidoso e técnico dos jogadores. E, é justamente aí que mora o descompasso no entendimento do que seria a essência do jogo brasileiro.
No geral, o jogador brasileiro é técnico e habilidoso, fruto da riqueza lúdica, diversificada e volumosa das práticas promovidas pela “escola de rua” desde a pequena idade, dentre outros fatores.
É inegável que as habilidades individuais do jogador brasileiro foram determinantes na qualidade do jogo das seleções de 70 e 82. Mas, não pelos dribles individuais tão característicos nos craques especiais do futebol e em outros esportes coletivos. Até porque não tínhamos “jogadores exclusivamente dribladores” naqueles dois times.
A arte e a criatividade técnico-habilidosa dos times de 70 e 82 esteve subliminarmente presente na dinâmica coletiva do jogo e, principalmente, nas trocas qualificadas e volumosas de passes.
Como em todos os pormenores táticos que discutem o futebol, esse poderá gerar contrapontos e é sempre bom que assim seja. No entanto, espero ser claro aos leitores quanto à importância que tenho dado ao jogo jogado com arte e criatividade coletivas sem necessariamente depender dos dribles individuais.
A fábrica brasileira de talentos do futebol continua produzindo craques da mesma forma que sempre o fez. Mas, hoje em dia, os jogadores extra-classe são treinados para um jogo jogado diferentemente se comparado àquele de pelo menos trinta anos atrás.
Esse tem sido tema recorrente em minhas postagens, pois continuo percebendo falta de discernimento a respeito do que seria arte e criatividade pertencentes aos esportes coletivos – o futebol, por exemplo.
A essência do jogo ofensivo brasileiro sempre foi a envolvente e empolgante coreografia apresentada nas trocas de passes dos seus jogadores nos espetaculares contatos relâmpagos com a bola. O subliminar técnico, habilidoso e auto-suficiente dos jogadores e equipes brasileiros são os principais provocadores dos geniais “toques de classe” nesse perfil de jogo. Vejam as Copas de 70 e 82 e tentem comparar a incidência do volume de dribles coletivos em relação aos dribles individuais e tirem suas conclusões.
Que as seleções de Aymoré Moreira (62), in memória, Carlos Alberto Parreira (94) e Felipão (2002), também campeãs mundiais com muitos méritos, não se desprestigiem por estarem ausentes nesta reflexão. Afinal, a essência do jogo ofensivo brasileiro – qualificado e envolvente jogo de passes – também esteve muito bem representada nas conquistas desses mundiais. As Copas de 70 e 82 protagonizam esta reflexão pelo encanto que despertam nas comunidades brasileira e mundial desde sempre.
Os dribles individuais, característicos dos “jogadores extra-classes dribladores” que o futebol brasileiro sempre produziu, foram e serão espetaculares em muitas situações táticas do jogo ofensivo, mas não com a essencialidade dos volumosos dribles coletivos que o jogo de passes produz.
O advento do jogo moderno agregou à essencial troca de passes do futebol os valores da compactação, organização posicional inteligente, poder físico, dentre muitos outros conceitos táticos individuais, grupais e coletivos, defensivos e ofensivos. A importância das táticas se escancararam num contexto de racionalização coletiva do jogo como nunca havíamos visto.
“– O jogo continua sendo o mesmo, mas com muitas diferenças!“
“- Que loucura! Parece que quem está escrevendo se enlouqueceu!“
“– Não! Ainda, não!“
O jogo brasileiro está muito mais perto que imagina do resgate da sua essência! Precisamos, no entanto, colocar pingos em alguns is do que entendemos sobre arte e criatividade nos esportes coletivos. A complexa natureza do ambiente que faz o nosso futebol nos dias de hoje ainda contribui para um “imaginário coletivo” dependente dos malabarismos individuais como solução à todas as necessidades do jogo.
A “crosta cultural” que alimenta e mantém essa crença nos faz marchar sem sair do lugar há décadas. Fazer o jogo de passes é muito mais simples que inventar a necessidade de muitos dribles ou dribladores num jogo de futebol. Os “extra-classes”, dribladores ou não, sempre foram e continuarão sendo raros de geração em geração.
Atualmente, alguns treinadores no Brasil estão conseguindo ordenar taticamente o jogo coletivo de suas equipes. Mesmo assim, grande parte da comunidade brasileira do futebol continua sem enxergar a essência da dinâmica desses jogos que são construídos. A miopia tática futebolística continua nos impedindo de ver a natureza da “importância subliminar” da arte e criatividade individuais no lance a lance do jogo de passes e no todo do jogo ofensivo.
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